A tradução a seguir foi realizada a partir da edição de 1976 da Editorial Anagrama, em língua espanhola. O material corresponde a parte da obra Zur Geschichte der proletarischen Frauenbewegung Deutschlands, Moscou, 1928.
PRIMEIRA PARTE
CONTRIBUIÇÃO À HISTÓRIA DO MOVIMENTO PROLETÁRIO FEMININO ALEMÃO
A emancipação feminina na revolução alemã de 1848-1849
É surpreendente que no Sturm und Drang1 revolucionário de 1848-49 na Alemanha, somente algumas mulheres se lançaram ativamente na arena com suas reivindicações, não interviram com coragem e energia nos acontecimentos políticos e sociais nem massas de mulheres, menos ainda organizações femininas. Portanto, na Alemanha, o comportamento das mulheres foi absolutamente distinto do das mulheres do Terceiro Estado e, em particular, das pequeno-burguesas e das proletárias das periferias parisienses durante a revolução francesa. Permita-nos recordar alguns episódios particularmente significativos e algumas figuras femininas daquele período: a manifestação das parisienses dirigindo-se a Versalhes para trazer a Paris “o padeiro e a padeira”, quer dizer, o rei e a rainha, com toda a Assembleia Nacional; aquela memorável manifestação estava impulsionada pela “amazona da liberdade”, Théroigne de Méricourt, que havia combatido na primeira linha durante o assalto à Bastilha e participado ativamente na insurreição de 10 de agosto de 1792 que precedeu a queda da monarquia; este é somente um exemplo da profunda e tumultuosa aspiração das mulheres a defender sua pátria revolucionária com armas na mão. Em nome de várias centenas de cidadãs, Pauline Léon pedia aos representantes do povo, marretas, pistolas e sabres para construir um campo de treinamento. Em Paris e muitos outros departamentos, se formaram corpos de amazonas; 4000 jovens desfraldaram suas bandeiras em Bordeaux em 14 de julho de 1792. E são inumeráveis as mulheres e jovens que combateram ao lado dos soldados durante as campanhas que a jovem república lançou contra a coalizão da Europa reacionária, e não era raro serem citadas com honra nas ordens do dia do exército revolucionário por seu valor. Recorda-se, também, a grande influência exercida por Madame Roland no partido dos girondinos, ou seja, da grande burguesia, enquanto a atriz Rose Lacombe, que havia sido condecorada pelo valor demonstrado na tomada de Tullerias, apoiada pela “Sociedade das republicanas revolucionárias”, foi a força motriz daquela manifestação que lançou as primeiras sementes para a destruição do partido girondino; pensa-se na petição que fizeram as parisienses na Assembleia Nacional de 1789, mediante a qual reclamavam a igualdade política e a liberdade de comércio para o sexo feminino; a Declaração dos direitos da mulher e da cidadã, de Olympe de Gouges; ao apaixonado interesse com a qual as mulheres seguiam as deliberações da Assembleia Constituinte e da Assembleia Legislativa e as lutas da Convenção nas quais participaram com paralisações, iniciativas e delegações; relembre-se, finalmente, a sua presença nos círculos políticos e nas associações femininas. Em toda França não existia uma única cidade, por pequena ou grande que seja, que não tivesse seu próprio círculo feminino, e em muitos lugares também, as habitantes das vilas eram membros de associações políticas femininas. No outono de 1792, a sociedade das “Amigas da liberdade e da igualdade” de Lyon, se pôs à frente de um movimento surgido de uma revolta provocada pela fome, e confiou temporariamente a cidade nas mãos das mulheres. Estas fixaram os preços das mercadorias de primeira necessidade, e expuseram publicamente as listas de preços. As “Amigas da liberdade e da igualdade” de Besançon aprovaram uma resolução pela qual se solicitava à Convenção que reivindicasse o direito ao voto feminino nas assembleias eleitorais. No entanto, enquanto nas províncias a maior parte dos círculos femininos aumentava seu próprio compromisso na luta geral dos republicanos contra a aristocracia feudal, as mulheres politicamente organizadas da capital se definiam em relação as lutas que se produziam no campo burguês, lutas em que as classes lutavam entre si até a última gota de sangue para decidir a sorte da revolução. A “Sociedade das republicanas revolucionárias” de Paris uniu sua atividade e seu destino com os revolucionários extremistas, cujos objetivos sociais iam muito mais além do que a política de Robespierre, e inclusive mais além das reivindicações dos hebertistas. Precisamente para castigar estas “loucas” da “Sociedade das republicanas revolucionárias”, que com suas delegações e petições radicais se tornaram extremamente incômodas, o Comitê de Saúde Pública decidiu, no final de 1793, fechar todos os círculos femininos. Porém, a renascida consciência política e a necessidade material, empurraram de novo as mulheres para a luta aberta. Muitas delas tomaram parte na insurreição de maio de 1795, com a qual as massas famintas das periferias parisienses tentaram pela última vez pôr freio a reação dominante iniciada desde o Termidor. Depois disto, a Convenção ditou uma ordem que obrigava as mulheres a permanecerem em suas respectivas casas.
Também na Alemanha, se fez sentir muito rapidamente as reivindicações de emancipação feminina que haviam estalado na França e Inglaterra. Paralelamente à publicação de A defesa dos direitos da mulher, de Mary Wollstonecraft, o prefeito e chefe de polícia de Königsberg, Theodor Gottlieb von Hippel, influenciado pela violenta subversão da situação francesa, defendeu a igualdade do sexo feminino em seu polêmico escrito Sobre o progresso cívico da situação das mulheres e sobre a educação feminina. Desde este momento, as ideias sustentadas pelos precursores franceses e ingleses a favor da igualdade dos sexos, encontraram partidários na Liga alemã do período pré-revolucionário. Sua importância numérica não foi por si só significativa, e a organização careceu especialmente de espírito de luta política e revolucionária. Seus membros pertenciam majoritariamente às camadas sociais acomodadas e sua aspiração individualista à liberdade e à igualdade de direitos se expressava, sobretudo, dentro dos limites de um discurso culturalista e subjetivo sobre a “emancipação do sentimento”, com uma base claramente romântica. Independente da medida em que as mulheres da respeitável burguesia se sentiram afetadas pelos acontecimentos políticos de 1848-49, seus sentimentos e pensamentos não foram mais além da nebulosa atmosfera de uma paixão completamente nacionalista pela democracia. Isso também é válido para as poucas mulheres desta burguesia que por sua atividade política se destacaram entre as massas. Considere-se apenas as três famosas “amazonas da revolução alemã”: Amalie von Struwe, Mathilde Anneke e Emma Herwegh. Ninguém pode negar a luminosa e apaixonada entrega destas três mulheres e de algumas outras companheiras suas de luta aos ideais de março, a força e a sinceridade de seu compromisso, a temeridade de sua fé. No entanto, repassando a vida e a atividade destas mulheres em seu conjunto, se põe claramente de manifesto que, sobretudo, se sentiram impulsionadas até a ação política e a luta revolucionária por amor aos seus respectivos maridos. Se se prescinde deste aspecto, o “amazonismo” de 1848-49 foi, mais do que tudo, uma moda daquele tempo. As publicações social-democratas atuais tendem a pôr em relevo, no sentido positivo, o fato de que as revolucionárias de 48 praticamente nunca recorreram às armas, punhais ou pistolas, que levavam na cintura. Mas este elogio reveste também o caráter de uma crítica ao gesto vazio, teatral, que não deveria ser o correlato de uma sólida vontade de luta. Amalie von Struwe permitiu sua prisão pela soldadesca ébria e furiosa, com a cabeça alta, cheia de orgulho. Se atribui a Emma Herwegh, mais do que a seu marido, um excepcional valor e sangue frio nas situações mais perigosas.
Em resumo, parece que o compromisso revolucionário das mulheres citadas tenha sido mais alvo de indignação moral e de público escárnio por parte do decoroso filistinismo alemão, do que objeto de uma séria consideração por parte dos contrarrevolucionários. Ao contrário das combatentes da revolução francesa, suas seguidoras alemãs não se distinguiram por uma ação autônoma e decidida a frente das massas femininas ansiosas de justiça e liberdade; não arrastaram massas populares dotadas de uma comum vontade política. E, ademais: a falsificação da história por obra e graça de social-democratas tentou justificar a coalizão do governo dos reformistas com a burguesia e, em particular, apresentar as mulheres proletárias como entusiastas partidárias desta aliança, evocando, ao mesmo tempo, com pouca especulação sentimental, as sombras das protagonistas do 48 alemão, atribuindo como mérito seu o fato de que pertenciam às classes possuidoras e cultas e mostrando a sua ligação com os sofrimentos do povo como pura e simples simpatia e não como solidariedade de classe. Pelo contrário, seria oportuno assinalar, por exemplo, o heroísmo das combatentes da Comuna parisiense, heroísmo que se manifesta de maneira tão simples e, por assim dizer, natural, como só podem sê-lo as coisas importantes. E mais um exemplo: as revolucionárias russas que “andavam” atrás das massas populares como propagandistas, lutando como terroristas frente a frente com o czarismo russo, arriscando-se a terminar na Sibéria ou na forca, provenientes a maior parte da aristocracia e da burguesia; a historiografia do feminismo não trançou para elas nenhuma coroa de louros.
Se compreende porque, na atmosfera da revolução alemã, puderam surgir associações femininas de tendência liberal que, no entanto, não se colocaram nenhum objetivo político fundamentado socialmente e que não formularam reivindicações radicais com respeito aos direitos das mulheres. Sua característica mais destacada foi a de revestir a função de órgãos auxiliares das associações democráticas masculinas, de organizações samaritanas dedicadas ao recolhimento de fundos ou de alimentos ou a serviços de informação e enlace; ou também a assistência sanitária, ao cuidado dos perseguidos, etc. No que concerne à participação das mulheres da burguesia alemã na luta revolucionária que esta classe manteve contra a sociedade feudal, não podemos acrescentar nada ao que escreveu Louise Otto-Petersi a quase vinte anos de distância dos acontecimentos, quando por outra parte a distância do tempo permitia uma avaliação mais objetiva, porém também acarretava o perigo de tergiversação. Louise Otto-Peters foi uma das poucas mulheres alemãs que soube unir, de forma persuasiva, a luta pela organização do próprio sexo com o movimento revolucionário de 1848-49, ainda que se viu obrigada a combater somente com sua pena, sem punhais nem pistolas na cintura. Olhando ao passado, escreve:
“Apesar de que a grande maioria das mulheres estava ao lado dos fanáticos da ordem que dificultavam a vitória das aspirações de liberdade quase que em maior medida que os opositores mais obstinados, e apesar de que as consequências da indiferença, da ignorância e da abstenção da vida política do tempo por parte das mulheres e homens favoráveis ao progresso se mostraram funestas ao movimento, foram muitas as mulheres que defenderam com entusiasmo a causa da democracia, combatendo com a pena e a palavra a favor dos direitos políticos de seu sexo. A causa das mulheres e sua condição se converteram em questão de partido e, de fato, nenhuma atividade feminina coletiva poderia desenvolver-se à margem de um partido. Se criaram aqui e ali associações democráticas femininas que, especialmente no período da insurreição, que posteriormente será derrotada, desempenharam uma obra de sublime abnegação, correndo todo tipo de perigos. Porém, por isso precisamente tais associações foram dissolvidas pela força e seudesaparecimento também representava, frente à reação cada vez mais ameaçadora, o desaparecimento de todas aquelas aspirações das quais havia dado vida a renovada consciência do sexo feminino. Tampouco para os homens as coisas foram da melhor maneira. Por outro lado, como puderam escapar as mulheres do destino geral?”2
E como iam as coisas para as mulheres das classes trabalhadoras? Por acaso a dureza de sua sorte não as frustraram com os fatos ocorridos no curso da luta por um tempo melhor, pela conquista de todos os direitos, não somente para seu sexo, senão também para toda a sua classe? O desenvolvimento econômico da sociedade alemã dos anos quarenta do século passado. O original usa século passado, que é o XVIII era, sem dúvida, mais avançado que o da França na época da grande revolução. O capitalismo em seu pleno e rápido desenvolvimento, esmagava sem piedade sob seus pés de aço, o artesão e o pequeno proprietário, os transformava em escravos assalariados das fábricas, ou melhor, graças ao sistema de trabalho a domicílio, os reduzia a uma condição análoga dentro de suas casas. O capitalismo submeteu, em sua ânsia homicida, batalhões de mulheres, de jovens e crianças de pouca idade, levando ao extremo a miséria do proletariado.
A carga mais pesada caía sobre os ombros das mulheres, oprimindo em particular as operárias industriais. Acostumadas a uma situação familiar de submissão e subordinação, e dotadas de menor espírito de oposição social, mais indefesas e amarradas que os operários, estavam obrigadas a servir ao patrão com tempo de trabalho interminável, de dia e de noite, e como melhor satisfaziam à sede de lucro e ao capricho do empresário, recebiam salários de fome, submetidas a condições que nem sequer respeitavam os mínimos requisitos higiênicos, assim como a um tratamento repulsivo. Atadas, todavia, às cadeias do passado, se viam expostas a qualquer tipo de mortificação imposta pela nova era de domínio do capital. Com toda segurança, em milhares de corações destas vítimas da sociedade capitalista devia habitar a esperança da iminente chegada de um reino de liberdade, igualdade e fraternidade. Muitas delas, durante a revolução, foram de preciosa ajuda nos levantamentos, tanto na fabricação de cédulas eleitorais como na construção de barricadas. Porém, que eu saiba, não existem documentos que deem testemunho de seu início, como força compacta e capaz de plantear reivindicações, em assembleias e conferências ao lado dos irmãos, por sua vez, levantados contra a exploração e a escravidão: não existem testemunhos de seu levantamento em massa frente as autoridades estaduais ou municipais. As trabalhadoras não exigiram o que deveriam solicitar e conquistar em sua qualidade de proletárias exploradas e socialmente privadas de direitos. A ideologia de “o que convém à mulher” exerceu claramente uma força muito pesada na Alemanha, força que somente se derrubou quando o capitalismo se pôs a “filosofar com o martelo” de um modo muito mais radical e inexorável.
O preâmbulo de Louise Otto-Peters com a reivindicação da plena igualdade social do sexo feminino representou, sem dúvidas, um fato de valentia e segue sendo um acontecimento memorável. Sua petição de justiça e de ajuda para as “pobres irmãs”, as proletárias, não pode cair no esquecimento. No entanto, para avaliar plenamente o alcance histórico de Louise Otto-Peters é necessário olhar para além do Reno, até a França. Neste país, a monarquia de julho favoreceu um acelerado desenvolvimento da moderna produção capitalista, uma maior diferenciação das relações sociais e a mudança das formas de vida da burguesia. Em consequência, a questão da emancipação feminina deu vida a uma ampla corrente de pensamento, cuja profundidade já expressava as contradições de classe da sociedade burguesa. Quando se manifesta a primeira oposição ao feminismo, se demonstra também a força deste movimento. As mulheres cristãs rechaçaram em seu jornal todo tipo de libertação política e social da mulher. Reivindicaram, tão somente, uma reforma da educação do sexo feminino com o único fim de proporcionar para a mulher, enquanto esposa e mãe, e por isso no âmbito das duas únicas profissões consentidas, uma melhor posição no seio da família patriarcal. Os objetivos das feministas que se agruparam em torno da Madame de Mauchamps para a criação de um jornal político feminino eram, muito mais, objetivos burgueses e limitados em sentido feminista. Por exemplo, suplicaram para Luis-Felipe, rei dos franceses, que se declarasse também “rei das francesas”, e suplicaram-lhe a concessão as mulheres com propriedades os mesmos privilégios políticos que desfrutavam os grandes proprietários. Ademais, solicitaram o acesso as profissões liberais, como, por exemplo, na medicina e na política, ainda que também esta última reivindicação somente ia a favor daquelas mulheres que fossem capazes de fazer frente a estudos muito custosos. Apesar do limite dos esforços destas feministas, que tendiam substancialmente a ampliar o círculo dos privilegiados no seio da sociedade burguesa, incluindo as mulheres das classes dominantes, as aspirações da outra ala do movimento feminino transgrediam os limites da ordem existente. Exigiam a plena emancipação de todo o sexo feminino; homens e mulheres proclamavam unidos esta reivindicação como fator imprescindível para uma mudança radical da sociedade. Na França dos anos 30 e 40 do século passado as reivindicações e as avançadas aspirações de Louise Otto-Peters pela revolução alemã encontraram espaço – a um nível muito mais amplo – nas teorias das seitas e das escolas socialistas como seu componente essencial, e não somente na obra escrita política e literária.
Os grandes utopistas e seus seguidores, em seus sonhos de uma organização harmônica e planificada da sociedade, que em sua imaginação representava a salvação das cruéis contradições da sociedade burguesa, incluíram obviamente, além da emancipação dos operários, a emancipação da mulher. Em sua polêmica contra Dühring, Engels citou os utopistas afirmando que, como eles, Dühring “também imagina que se pode separar a moderna família burguesa de todo seu fundamento econômico sem alterar também toda a sua forma.”3 Engels acrescenta:
“Os utopistas se encontram nisto muito acima do senhor Dühring. Para eles, a livre associação dos homens e a transformação do trabalho privado doméstico em uma indústria pública significavam ao mesmo tempo a socialização da educação da juventude e, com ela, uma relação recíproca realmente livre entre os membros da família.”4
O seguinte dogma procede de uma missa saint-simoniana: “Tanto a mulher como o operário tem necessidade de serem libertados. Ambos, encurvados pelo peso da escravidão, devem estender-se as mãos e revelar-se uma nova linguagem.” Estas ideias tiveram um certo eco na literatura e, em particular, entre as muitas obras, nas novelas de George Sand; a um tempo foram consideras respeitáveis, puderam inclusive entrar, na Alemanha, na “habitação das crianças”. Não nos interessa tanto agora o destino destas ideias entre a classe burguesa, como o fato de que já a princípios dos anos 40, na França, se produziu uma tentativa de levar as massas de proletários e proletárias a consigna da emancipação do operário e da mulher para podê-las realizar através destas mesmas massas.
Foi uma mulher que tomou consciência da necessidade de dar este passo e procedeu com valentia e perspicácia em direção à realização deste ousado plano. Flora Tristan seguia em parte Saint-Simon, Fourier e Owen, mantendo, no entanto, aquele grau de autonomia que lhe permitiu finalmente saber conjugar organicamente suas conclusões com a própria experiência derivada de seus contatos com aquele gigantesco movimento de classe do proletariado que foi o cartismo na Inglaterra. Considerou os operários como uma classe particular, reconhecendo que sua salvação da miséria e da opressão não podia depender de tal ou qual receita de reforma social, cujos custos dependiam do humor de algum capitalista filantropo. Pelo contrário, os operários, em sua qualidade de classe autônoma, deviam superar, mediante sua própria força organizada, as privações da miséria e da ignorância. Irmanados pelos sofrimentos, mais além de toda discriminação patriótica, ou de língua, raça, costumes e religião, deviam unir-se internacionalmente para levar à prática a grande obra de auto emancipação. Ademais, Flora Tristan estava convencida de que os operários não poderiam dar este passo à liberdade social sem a devota e fraterna colaboração das mulheres proletárias; colaboração que pressupunha a emancipação da mulher, a plena igualdade social das proletárias. Seu livro, A união operária, escrito em 1843, explica à classe oprimida o caminho em direção a autoemancipação, através da organização internacional dos proletários e proletárias. Eis aqui algumas das ideias contidas neste livro: o proletariado, enquanto classe, se constitui em uma união compacta, sólida e indissolúvel. Esta organização escolhe e paga um “delegado”, o qual defende os direitos do proletariado como classe no parlamento, frente à nação e contra as demais classes; estes direitos são: abolição de todo privilégio, reconhecimento do direito ao trabalho para todos, homens e mulheres; organização do trabalho. A união provê os meios para a construção de edifícios populares, de grandes, esplêndidos e funcionais complexos residenciais, cujo modelo é, sem dúvidas, os falanstérios de Fourier. Nestes palácios populares, se concentra todo o trabalho industrial e agrícola; os filhos e as filhas dos proletários recebem uma educação geral e profissional; os palácios populares compreendem também – ademais dos institutos de assistência e os hospitais para trabalhadoras e trabalhadores desafortunados e enfermos – institutos para anciãos e podem hospedar cientistas, artistas e estrangeiros. A educação moral, intelectual e profissional das mulheres do povo é o pressuposto indispensável para que se convertam nos pilares da energia moral dos homens do povo. O único meio para alcançar a liberdade consiste na igualdade jurídica do homem e da mulher.
As concepções de Flora Tristan são evidentemente utópicas e estão baseadas em muitas ilusões. Se bem que é certo que não ignora a existência das contradições de classe da sociedade burguesa, que é, ademais, o ponto de partida de seu programa para a união internacional do proletariado, não deixa de lado os aspectos principais do problema, ou seja, o fato de que as contradições de classe tem a sua origem nas relações sociais de produção e que não podem ser superadas dentro dos limites impostos pelo sistema de propriedade burguês. Por isso, falta também a necessidade da luta de classes, a necessidade de elevar o conflito de classe entre proletariado e burguesia à luta revolucionária contra as relações capitalistas de produção, considerando a dita luta como o instrumento necessário para a instauração da nova sociedade. Para Tristan, o objeto da união dos proletários e proletárias enquanto classe não é a luta contra as classes exploradoras e dominantes, senão a cooperação com estas últimas. Também existe um profundo abismo entre Flora Tristan e os alicerces do socialismo científico, desde cujo cume Marx e Engels, alguns anos mais tarde, chamaram ao proletariado à união internacional e à derrocada do capitalismo. Contudo, quão fracas, nebulosas e inconsistentes nos parecem as frases, ligeiramente tingidas de socialismo, da Chamada de uma jovem e as reivindicações do sexo feminino publicadas por Louise Otto-Peters na “Frauen Zeitung”,durante os ardentes anos de 1848-49, se as compararmos com os projetos e as consignas de Tristan elaboradas muito antes de que o furacão da guerra civil enchesse o ar com ideias de liberdade e as ondas do movimento mesclassem o indivíduo com as massas. A valente atividade de Flora Tristan se interrompe com sua prematura morte. Devido às fadigas de uma campanha de propaganda através da França, na qual difundiu sua concepção social entre os operários e as operárias, Flora Tristan adoeceu e morreu com 41 anos. Seu reconhecimento da necessidade de organização da classe operária para poder auto emancipar-se, se confirma quatro anos mais tarde com a revolução, porém os meios que ela previu para conquistar a emancipação foram refutados pelas circunstâncias que vieram levantar o proletariado francês durante a insurreição de junho, como um gigante poderoso e ameaçador.
A revolução de fevereiro de 1848 imprime um forte impulso ao movimento feminino francês. Por todas as partes surgem círculos femininos que se mobilizam na luta pela igualdade política do sexo feminino. O movimento supera o contexto puramente político e o círculo de mulheres burguesas que até então haviam sido as principais ativistas. As mulheres trabalhadoras se organizam para a defesa de seus interesses na “União das trabalhadoras”, no “Círculo das lavadeiras” e em outras associações de ofício. Também a imprensa se põe a serviço das mulheres. São numerosos os periódicos femininos, e alguns jornais, que dão a conhecer entre as massas a questão feminina. A aurora da liberdade, todavia envolta na neblina matinal, oculta o irreconciliável conflito de classe entre burguesia e proletariado; os estratos burgueses que tomarão o timão, todavia, seguem necessitando o braço forte da classe operária. “Organização do trabalho” é a consigna do dia que, como vimos antes, também havia penetrado na Alemanha. Se concede as lavadeiras uma jornada de trabalho de 12 horas, em vez das 14 de antes; o trabalho dos detentos não pode fazer concorrência desleal ao trabalho manual feminino. O governo provisório aceita a reivindicação das operárias a representar seus próprios interesses no seio dos poderes públicos: as delegadas femininas devem deliberar unitariamente na comissão encarregada do trabalho feminino. As reivindicações sociais planteadas pelas feministas na ordem do dia revolucionária unem o movimento feminino com a luta e a sorte dos operários e operárias; estas reivindicações são: escritórios estatais de emprego, cooperativas produtivas que vendam seus produtos eliminando os intermediários usureiros; construção de lavanderias e alfaiatarias públicas, nas quais as mulheres do povo possam realizar as necessidades domésticas e reduzir o gasto de energias físicas mediante um trabalho comum organizado e funcional; restaurantes de fábrica; obrigação legal de criar creches em todas as indústrias para que as mães possam nelas deixar seus filhos; organização de Casas do Povo com restaurantes, salas de reunião e recreação, bibliotecas, etc.
Quando, por causa do desenvolvimento das lutas de classe favorecidas pela instauração da república, prevaleceram no seio da burguesia as tendências reacionárias, se pôs claramente de manifesto que a sorte do movimento feminino estava irmanada com a sorte do movimento operário. Na comissão da Assembleia Constituinte de 1848, o discípulo de Fourier, Victor Considérant, amigo de Flora Tristan, apresentou uma moção a favor da igualdade política do sexo feminino. O rechaço da moção por parte da Assembleia que havia autorizado a sangrenta repressão do proletariado na batalha do mês de junho, não pode surpreender ninguém. A nova constituição rechaçava de forma explícita a emancipação política da mulher. Por isso, a apresentação de candidatas, em abril de 1849, para as eleições da Assembleia Constituinte, teve somente um caráter propagandístico e testemunhal. Uma destas candidatas foi Jeanne Desroin, uma professora que via no sistema socialista a libertação da mulher e do operário e que, ao lado de Eugénie Niboyet, demonstrou ser uma das mais consequentes feministas. O objetivo de sua candidatura era a de dar máxima publicidade à consigna de emancipação do sexo feminino em uma situação de crescente obscurantismo reacionário. A questão feminina, que havia estado na moda até há um ano, havia caído no esquecimento. Jeanne Desroin, graças a seu valoroso comportamento, conseguiu impor sua candidatura em um distrito eleitoral de Paris, contra a forte resistência daquelas “socialistas” pequeno-burgueses que, de palavra, sempre defenderam a emancipação de todos os oprimidos, menos quando tivessem de afrontar de fato as consequências de seu “ideal”, por velhacaria e míope egoísmo pessoal e de fração. Nas eleições, Jeanne Desroin, que figurava na mesma lista que George Sandii, não conseguiu nem sequer 20 votos. Em 1851, Pierre Leroux, socialista da escola saint-simoniana, solicitou à Assembleia Constituinte que a mulher fosse declarada adulta politicamente, porém, naturalmente, não logrou obter êxito algum.
Por contraste, outro exemplo da “pré-história” do movimento feminino deixa transparecer os miseráveis limites dentro dos quais pode manifestar-se um dos problemas fundamentais da sociedade burguesa moderna na revolução política da burguesia alemã. Em julho de 1848, em Seneca-Falls, no estado norte-americano de Nova York, se celebrou uma assembleia de mulheres burguesas com o objetivo de iniciar uma sistemática luta pela plena igualdade do sexo feminino. As duas promotoras da reunião, Elizabeth Cady-Stanton e Lucretia Mott, haviam conseguido então um certo renome como combatentes sociais no movimento de libertação dos escravos negros. Naquele tempo, era preciso que uma mulher que quisesse discutir e, inclusive, contestar a escravidão, possuísse um valor físico notável, além de moral. “A plebe urbana se lamentava, a imprensa murmurava e o púlpito trovejava”: assim escrevia Lucy Stone, uma das mais ativas defensoras da libertação dos negros e das mulheres nos Estados Unidos. Porém, nem tudo se limitava a choros e lamentos: os clérigos e os jornalistas podiam sentir-se satisfeitos, já que não faltavam ataques violentos contra as valentes mulheres que se atreviam a defender abertamente a causa dos negros. As experiências deste tipo e a coerência da luta pela emancipação dos escravos negros fizeram amadurecer em Elizabeth Cady-Stanton e Lucretia Mott a decisão de “convocar uma reunião para discutir sobre a escravidão da mulher”. As mulheres reunidas em Seneca-Falls se manifestaram unanimemente a favor do direito de voto do sexo feminino e reuniram seus protestos e reivindicações em uma declaração, extremamente radical, que não é naturalmente um documento de grande valor histórico. Quanto mais na medida em que copiaram literalmente aquela famosa declaração redigida quase 75 anos antes, em julho de 1776, com a qual as treze colônias norte-americanas da Inglaterra proclamavam a sua independência; declaração baseada na concepção filosófica do “direito natural” de todos os homens e caracterizada por um forte verniz religioso. Os habitantes brancos das colônias fizeram derivar este direito dos direitos inalienáveis da pessoa dados pelo Criador e salvaguardados por um Governo instaurado pelo povo. O governo violou estes direitos, na prática, reprimindo o comércio e a indústria americanas em favor da mãe-pátria inglesa. Na “declaração” de Seneca-Falls, no lugar do rei Jorge III, soberano responsável pelo governo ter ultrajado aquelas leis naturais e divinas, se menciona ao homem sob a forma de “tirano”, o qual, apesar de “também ter sido criado por Deus”, privou fraudulentamente a mulher “dos mais sagrados direitos”. O homem, nesta ingênua concepção do mundo e da história, é apresentado como o promotor consciente, omnipotente e autoritário de todas as situações e instituições sociais cujo domínio devem padecer as mulheres. E, no entanto, o tom da “declaração” é surpreendentemente enérgico, a estigmatização das situações contempladas é clara, e as reivindicações expressas são lineares. Citemos alguns extratos:
“A história da humanidade é uma história de reiterados preconceitos e usurpações por parte do homem em prejuízo da mulher, os quais se propõem o objetivo imediato de uma tirania a sua custa… O homem nuncapermitiuà mulher que exercitasse seu direito inalienável ao voto político… A obrigou a submeter-se a leis em cuja redação não participou. Adespojoudos direitos concedidos aos homens mais ignorantes e degenerados, nativos e estrangeiros. A privou do direito mais importante de um cidadão, o direito ao voto, de qualquer tipo de representação nos órgãos legislativos, oprimindo-a em todos os aspectos. Destruiu civilmente a mulher, desde o ponto de vista da lei. A privou de todo direito de propriedade, assim como do salário ganho por si mesma. A transformou em um ser moralmente irresponsável, enquanto lhe permite cometer muitos crimes sempre que sejam cometidos em presença do marido. O matrimônio a obriga a prometer obediência ao marido, o qual se converte em seu patrão em todos os sentidos, já que a lei lhe concede o direito de privá-la de sua liberdade e castigá-la.”
A “declaração” afirma, além disso, que o homem regulou as leis sobre o divórcio, no que se refere aos motivos e consequências da separação, de tal modo que “a felicidade da mulher não se tem absolutamente em conta”. O homem faz a mulher solteira pagar impostos “para sustentar um governo que somente a leva em conta quando pode utilizar seu patrimônio. Monopolizou quase todas as profissões rentáveis, enquanto que as que a mulher tem possibilidade de exercer, têm uma remuneração bastante mísera. Lhe fecha qualquer caminho à riqueza e à distinção… Lhe tirou a possibilidade de educação superior, excluindo-a da universidade. O homem somente a outorga uma posição subordinada, tanto na igreja quanto no Estado… Tergiversou as concepções morais da opinião pública estabelecendo distintas leis morais para o homem e a mulher… Se arrogou o direito de Jeová ao determinar o modo de vida da mulher, que deveriacompetir somente a consciência dela e a seu Deus. Se esforçou por todos os meios de privá-la de todo poder autônomo, e de toda estima pessoal para fazê-la dócil e obrigá-la a levar uma vida submissa e indigna.
… Frente a esta total escravidão da metade de nosso povo, a sua humilhação na sociedade e na religião, frente as injustas leis que acabamos de mencionar e, finalmente, frente ao fato de que as mulheres se sentem ultrajadas, oprimidas e despojadas de seus mais sagrados direitos, nós pedimos com insistência que lhes sejam concedidos todos os direitos e privilégios que esperam em sua qualidade de cidadãs dos Estados Unidos. Preparando-nos para esta obra, sabemos que vamos provocar não poucos mal-entendidos; e que nos expomos à chacota das pessoas; no entanto, nos serviremos de qualquer meio para alcançar o objetivo fixado. Celebraremos comícios, distribuiremos livretos, enviaremos petições aos órgãos legislativos e nos esforçaremos por ganhar para nossa causa o púlpito e a imprensa. Esperamos que esta assembleia se verá seguida de outras assembleias por todo o país.”
As mulheres reunidas em Seneca-Falls profetizaram que as primeiras consequências seriam distorções e escárnio. “Nossa declaração de independência foi referenciada por todos os jornais, desde o Maine até a Lousiana, ridicularizando todo o ocorrido. Meu pai veio a Nova York no trem da noite para ver se eu tinha enlouquecido”, escreveu Elizabeth Cady-Stanton. Todavia, foi mais doloroso o fato de que “muitas mulheres que haviam subscrito a declaração retiraram a sua assinatura”. Entretanto, e mesmo que fosse muito limitada sua petição sobre a base do direito natural dos plenos direitos das mulheres, a reivindicação de seus “direitos inalienáveis dos quais os homens as despojaram”, as americanas não estavam completamente equivocadas, pelo menos desde um ponto de vista formal. Em virtude da lei fundamental da Constituição inglesa (“nenhuma representação, nenhum imposto”), as mulheres que habitavam as colônias inglesas de então na América do Norte, em sua qualidade de “habitantes nascidas livres”, de “contribuintes”, e de “chefes de família”, possuíam direito de voto nos órgãos representativos municipais e estaduais. Direito, este último, que também havia sido concedido às mulheres que tinham propriedades na mãe-pátria inglesa, no que concerne ao estado até 1832, e aos municípios até 1835. Em última análise, não se tratava de um direito da pessoa, senão do direito do poder da propriedade, da posse, porém, apesar desta limitada exceção, sempre foi um reconhecimento do princípio do direito das mulheres a participar nas coisas públicas. As mulheres inglesas, nos dois séculos que precederam a perda deste direito, nunca o haviam utilizado, naturalmente. Quando as treze colônias se uniram em uma confederação de Estados, depois da guerra de independência contra a Inglaterra que durou de 1774 até 1783, as mulheres, todavia, podiam desempenhar, com base neste direito ao voto, sua função de cidadã ativa em nove destes estados. Somente em quatro Estados – Virgínia, Nova York, Massachusetts e New Hampshire – lhes era negado o direito ao voto, em parte já no curso dos últimos anos que precederam a fundação da União. As mulheres americanas cumpriram seu dever de cidadãs com valentia e resolução durante a guerra contra a Inglaterra e suas tropas de mercenários. Nos debates que tiveram lugar para decidir a Constituição no congresso da Filadélfia, em 1787, reivindicaram que se reconhecesse o direito de voto ao sexo feminino e que o incluísse na Constituição Federal de todos os Estados. A proposta foi rechaçada e o direito ao voto da mulher foi suprimido nos anos sucessivos nos nove Estados que, todavia, o contemplavam em 1787. De fato, nas leis eleitorais se incluiu, a propósito, o término “homem”, sendo Nova Jersey o último Estado a fazê-lo, em 1807.
No que se refere ao conteúdo da “declaração” de Seneca-Falls, deve acrescentar-se que os Estados Unidos da América, até a metade do século XIX, seguiam sendo em sua maior parte, um país de colonos com uma situação social e econômica que destinava à autonomia e ao espírito de iniciativa da mulher, um importante papel no seio de uma sociedade em vias de formação e que, todavia, não havia se estabilizado. A ressonância da declaração de Independência de 1776 nem sequer contrastava no tom com o novo texto, ao menos para os ouvidos daquela fé puritana que predominava nos Estados da Nova Inglaterra. Era mais um reflexo do Velho Testamento com seus gloriosos combatentes do espírito e da espada, homens e mulheres, do que a da servil beatitude do Novo Testamento. A ideologia da submissão, ideologia cultivada pela orientação luterana do protestantismo que reduzia qualquer relação entre as pessoas à relação entre súdito e autoridade, lhes era totalmente desconhecida. Não poucos os espíritos mais consequentes e radicais do “Novo Mundo” derivavam de círculos de Quakers obstinados, os quais reconheciam iguais direitos e deveres ao homem e a mulher, tanto na casa quanto na igreja, em flagrante contradição com as palavras de Paulo: “O homem é o senhor da mulher como Cristo é o senhor da Igreja.”
Os acontecimentos históricos que citamos demonstram claramente que a revolução alemã de 1848-49, no que diz respeito a emancipação feminina, nem sequer logrou dar um pequeno passo adiante se a compararmos com as conquistas da revolução francesa. Tampouco alcançou o seu nível, tanto no que concerne a clara e específica formulação das reivindicações de direitos do sexo feminino e a necessidade de continuar avançado energicamente, como no que concerne a intervenção revolucionária de mulheres eminentes e de amplas massas femininas no curso dos acontecimentos produzidos para a transformação da sociedade. E tudo isso depois de um século de história dominado pelo poderoso avanço de uma capitalismo reorganizado. Dizer que o movimento feminino não tinha adiantado nada, equivale a dizer que havia retrocedido. Porém, a base desta regressão eram os enormes avanços do desenvolvimento histórico e do amadurecimento das contradições de classe no período situado entre a revolução francesa e a alemã. Deste modo, surge e se afirma um dos contrastes indissoluvelmente ligados à sociedade burguesa, fundada sobre as contradições de classe. A burguesia alemã já não podia se jactar de ser a promotora dos interesses mais altos de toda a humanidade, como pode fazer sua irmã francesa com a embriagadora e sedutora retórica da filosofia do direito natural. A burguesia alemã não podia ignorar a contradição de classe com o proletariado, afrontar valentemente os mais diversos problemas sociais e liberar as reprimidas energias dos explorados para pô-las a seu serviço. Esta calamidade histórica da burguesia alemã foi caracterizada por Rosa Luxemburgo da seguinte maneira:
“A força e autoridade dos dirigentes burgueses, a temeridade, a grandiosidade e a eficácia de suas ações, tem a sua medida em sua capacidade para enganar-se a si mesmos e enganar as massas que as seguem, sobre o verdadeiro caráter de seus objetivos, sobre os limites históricos de suas tarefas. Os principais dirigentes da burguesia souberam conduzir as classes burguesas para a revolução francesa, aquela primeira luta de classes moderna cujas consequências históricas estavam escondidas por um arco-íris brilhante e nebuloso de ilusões ideológicas. Quanto mais avança o curso dos acontecimentos, fazendo que seja já impossível continuar a ilusão e seguir enganando as massas, tanto mais fracassam os partidos burgueses, e tanto mais desce o nível de seus dirigentes. Se pensa a respeito na diferença que existe entre os gigantes da grande revolução e pigmeus da revolução de 48.”
A revolução alemã se viu enfrentada por um conflito de classe tão avançado entre burguesia e proletariado, que não podia atuar sem que a correlação de forças entre estas duas classes se inclinasse a favor do proletariado, propiciando com isto o desenvolvimento de uma revolução propriamente proletária. A tendência história geral que esboçamos também se verificou nos problemas mais maduros da questão feminina. Sua formulação quase sempre foi confusa, imprecisa e fragmentária, suas consignas tomaram empréstimos da timidez, da fragilidade e da insuficiência. O temor ao proletariado, do qual permaneceu presa a revolução alemã, fez retroceder também a causa da emancipação feminina, diminuindo a sua amplitude e alcance e paralisando o seu impulso. Esta é a razão pela qual as dirigentes burguesas do movimento feminino e as combatentes da revolução nos parecem muito menos vigorosas, significativas e brilhantes do que as suas irmãs francesas. O vento da revolução não soprava com bastante força e calor para fazer despertar a adormecida energia das mulheres alemãs e arrastá-las com ímpeto à luta. Ademais, existiram também problemas de maior gravidade, que contribuíram a fazer fracassar a afirmação da questão feminina na sociedade burguesa. Nesta sociedade, os porta-vozes e partidários da ideologia burguesa são, sobretudo, os intelectuais, os profissionais. O capitalismo ascendente faz crescer, como é óbvio, a importância dos intelectuais na sociedade, porém ao mesmo tempo deforma sua situação, fazendo-a mais insegura e contraditória. Avança muito mais o temor à concorrência das mulheres nas profissões liberais, entendidas como monopólio dos homens, a qual não somente impossibilitou uma clarificação da questão feminina, senão que também provoca sua marginalização em nome de Deus ou da ciência. Também o burguês, que vê com bons olhos um progressismo moderado, experimenta uma dupla reação, como macho e como homem, frente à reivindicação de igualdade da mulher. Por um lado, entende ou pelo menos intui, que com a abolição da velha economia doméstica produtiva, a forma familiar tradicional se fez em pedaços e que a mulher necessita uma atividade mais completa que eleve a sua personalidade. Uma mulher mais educada, que compreenda muitas coisas, lhe convém; uma mulher culta, socialmente ativa, como representante de “sua” casa, o agrada. Porém, por outro lado, uma maior liberdade e independência da mulher na família, se a compara com a situação do passado, põe em perigo a sua tranquilidade, sua indolência, seus costumes. Agora está muito menos disposto a permitir que sua situação de patrão na casa seja posta em perigo, dado que as tradicionais garantias de sua posição estão vacilando na vida pública e se vê obrigado a fazer frente a uma enervante concorrência.
Ademais, o conflito se torna mais evidente quando o cidadão vê que, em sua qualidade de empresário, deve enfrentar-se diretamente com o movimento feminino. A dissolução da economia familiar como economia produtiva e da forma familiar predominante não somente é consequência, senão também premissa do poderoso desenvolvimento da indústria capitalista, a qual se abrem novos setores de trabalho e novos mercados e a aportação de nossa força de trabalho. A mulher vinculada a tradições e leis é um objeto de exploração mais dócil e indefeso do que o seria uma concidadã que tivesse direitos iguais e que fosse capaz de lutar com as mesmas armas políticas do homem contra a sua exploração.
O Manifesto Comunista e Os Princípios do Comunismo confirmam o fato de que as tendências de desenvolvimento capitalista descritas por Engels, operavam realmente no período da revolução alemã e influíam na atitude manifestada com respeito ao problema da emancipação feminina. Ambos documentos demonstram, ao mesmo tempo, que mediante a clarificação e valorização do processo histórico que conduz à libertação da mulher, o comunismo superou em muito o liberalismo e a democracia. Com o posterior desenvolvimento do capitalismo e das contradições gerais que o acompanham na sociedade burguesa, também os contrastes na tomada de posição sobre a questão feminina foram se agudizando muito mais do que em 1848. Sua incidência se pode advertir ainda hoje na luta pela plena emancipação e igualdade do sexo feminino.
Notas:
1O itálico é da edição italiana, que preferiu conservar a terminologia original, ainda que o conceito de Sturm und Drang pertence tradicionalmente à cultura romântica. Neste caso, Sturm und Drang indica as tormentas provocadas pela revolução de 1848.
2Louise Otto-Peters, Das recht der Frauen auf Erwerb (“O direito das mulheres ao trabalho assalariado”), J, Hamburgo, 1866, p. 77-8.
3Friedrich Engels, Anti-Dühring, Grijalbo, México, 1968 p. 315.
4Friedrich Engels, Anti-Düring, Grijalbo, México, 1968 p. 315-16.