A
cena do presidente da Mattel abrindo o pregão da bolsa de valores de
Nova York sob uma chuva de confetes cor-de-rosa é emblemática para
demonstrar do que se trata o recém lançado filme da Barbie:
uma grande peça de propaganda reacionária,
não só da empresa que produz a boneca, que teve um aumento de 18%
(1 bilhão de dólares) do valor de suas ações desde o lançamento
do filme, como também de todo um conjunto de ideias burguesas
apodrecidas a
respeito da
questão feminina.
Buscando
fazer com que sua visão de mundo chegue o mais longe possível a
burguesia não economizou no marketing, milhões de dólares foram
gastos desde o anúncio da estreia até agora para tornar, cada vez
mais difícil, andar pelas cidades sem se deparar com uma peça
promocional do filme; os outdoors, as redes sociais, a televisão, e
até mesmo as roupas que as pessoas usam no dia a dia se tornaram uma
grande vitrine de divulgação da obra, investimento tal
que terá ainda maior
retorno.
Outra
parte importante da propaganda do longa é a grande divulgação
elogiosa, que este vem recebendo da
parte das feministas burguesas.
Estas têm tratado
o filme como o mais moderno manifesto de combate ao patriarcado.
Pessoas que até pouco tempo atrás rejeitavam a Barbie por se tratar
de mais um instrumento de imposição de padrões opressivos de
feminilidade,
hoje se vestem de rosa e defendem a boneca como o maior símbolo de
“empoderamento” feminino.
Tergiversando
sobre o caráter de classe da questão,
o feminismo burguês
e pequeno-burguês
não conseguem fazer
uma análise completa, ficando restritos apenas àquilo que a obra
tem a dizer sobre si mesma. Segundo essa lógica,
bastaria o filme se declarar como uma peça progressista e de combate
ao patriarcado para de fato sê-lo. Porém,
como
a luta de classes se
manifesta na cultura, obviamente
há interesses por trás de produzir
filmes
como esse, e logo, para descobrir o caráter de uma obra devemos nos
perguntar a que classe ela serve e a visão de mundo de que classe
ela difunde.
Se
não nos deixamos levar como boiada atrás da propaganda e divulgação
do filme e partimos
da
posição das classes populares, logo vemos que no caso do novo filme
da Barbie é a concepção de mundo da burguesia decadente
que está sendo difundida,
e não a dos trabalhadores
explorados e cada vez submetidos às condições mais precarizadas de
trabalho e de vida.
O
enredo do filme quer
mostrar o caminho percorrido por uma Barbie, desde sua vida sempre
perfeita no mundo das Barbies, a Barbielândia, até o mundo real,
onde ela se depara com uma série de contradições que são novas
para ela e que acabarão
por se manifestar em seu mundo de fantasia.
Desde
o início,
os produtores do filme
tentam usar a
Barbielândia como uma espécie de representação invertida sobre
sua visão do que é a sociedade.
Logo, analisando o que é
e como funciona essa terra ficcional podemos ter uma ideia sobre a
concepção de mundo que eles têm
sobre a nossa própria realidade. Isto
é, a visão de que a
sociedade se divide em
gêneros e não em
classes. Na Barbielândia não há divisão de classes, a única
distinção social que pode ser encontrada é entre as mulheres, as
Barbies, que detém os cargos de poder e os homens, os kens, que
apresentam um papel secundário, existindo basicamente em função da
existência das mulheres. Sendo justamente nessa inversão da posição
social de homens e mulheres que supostamente residiria a ironia do
filme, mas sem abrir mão da necessidade de um homem reafirmando o
valor das mulheres.
Essa
ideia de uma divisão da sociedade baseada nos sexos e não nas
classes é típica do feminismo burguês e
suas derivações pós-modernas, que
expressa a ideia reacionária de oposição entre homens e mulheres,
sem tomar
a classe a que pertencem.
Colocam
lado a lado mulheres trabalhadoras exploradas e mulheres
empresárias exploradoras,
numa
tentativa de conciliação entre
classes antagônicas
tendo como base o sexo. Essa concepção não passa de uma arma
ideológica da burguesia no seio do movimento feminino, que busca
dividir homens e mulheres para que estes não lutem juntos contra o
sistema de opressão e exploração do
capital. Mas no mundo da
Barbie não há classes, é uma espécie de matriarcado em que todas
as mulheres são profissionalmente bem sucedidas, sejam
elas patrões ou trabalhadoras. Com
os homens há diferenças, mas a função social deles é adorá-las.
Uma espécie de mundo feminista perfeito, que chega às
raias de uma fantasia
ridícula.
Em
certo momento do filme,
a Barbie decide ir ao mundo “real” e o ken vai atrás, e pasmem,
o mundo real é a Califórnia
como tradicionalmente é representada em todos os filmes clichês
norteamericanos, e não o Estados Unidos profundo, das rebeliões
antirracistas e dos sem casa pós-crise de 2008. Nesse mundo “real”
descobrem o machismo e o patriarcado e, maravilhados com a descoberta
de um mundo onde os homens mandam, os Kens decidem instalar o
patriarcado na Barbielândia, isso com o apoio das próprias Barbies,
que recebem o novo sistema de braços abertos. Mais
uma vez a narrativa do filme expressa a visão do feminismo burguês
sobre o que é e como surgiu o patriarcado em nossa sociedade. A
opressão feminina como fruto da vontade consciente dos homens de
subjugarem às mulheres e não consequência direta das
relações econômicas decorrentes do surgimento da propriedade
privada e da sociedade de classes.
A
solução que o filme tenta dar para essa nova situação da opressão
das mulheres é ainda mais idealista e reacionária; a solução para
opressão é que as mulheres se conscientizem sobre sua própria
situação e que, uma vez estando todas as mulheres socialmente
conscientes o que restaria fazer é travar a luta no âmbito do Velho
Estado para derrubar as leis reacionárias e instalar novas leis
progressistas, para fazer com que assim a sociedade seja transformada
e a opressão da mulher se torne algo do passado. Essa ideia inverte
a realidade, colocando-a como reflexo das leis e não as leis como
reflexo jurídico da forma concreta que uma sociedade se acha
organizada.
A revolução da Barbie é uma nova constituinte no capitólio da
Barbielândia, o retorno da presidente e a ‘democracia’
com ampla representatividade feminina. Ou seja, tudo que a própria
história já demonstrou totalmente falho
para pôr fim à opressão
feminina é apresentado
como solução,
e que
o caminho para isso é a tomada de consciência individual de cada
Barbie por meio da conscientização feminista, enquanto provocam
brigas e ciúmes
em seus respectivos parceiros Ken. Assim, mesmo quando colocam a
questão da luta por direitos fazem de forma burguesa, apoiando nos
próprios preconceitos contra as mulheres, como manipuladoras.
Tendo
tudo isso em vista não é nehuma
surpresa que a forma na qual a sociedade se organiza ao fim do filme,
após toda a ladainha sobre igualdade entre homens e mulheres, sobre
papéis de gênero etc.,
não passe de uma repetição da mesma forma na qual ela era
organizada no começo do filme, salvo algumas alterações
insignificantes; os papéis que os gêneros desempenham na sociedade
se mantêm inalterado e as mulheres continuam a reproduzir todos os
esteriótipos burgueses de aparência e comportamento, só que
novamente numa sociedade matriarcal.
O
filme deixa muito claro que qualquer crítica que tente analisar o
problema da opressão feminina sem ter como ponto de partida a
propriedade privada dos meios de produção e
a luta de classes, não
pode ir mais além da defesa pura e simples do
que há de mais reacionário na sociedade. A burguesia, representada
no filme pelos diretores da Mattel, não passa de um antagonista
cômico que, vendo que seus lucros não estão ameaçados por todo o
palavrório bonito de “Barbies normais” termina o filme como mais
um aliado. A conclusão para eles é: se podemos lucrar com Barbies
feministas, façamos os mais diversificados modelos. Isto
é, “seremos feministas”
se pudermos lucrar com isso. Deixa bem evidente a mensagem do filme:
o imperialismo pode aceitar as diferenças nomeadas
por ‘diversidade’,
incorporá-las e lucrar com elas. Desde que não ameasse as bases de
sustentação do capitalismo é bem vinda a diversidade e a crítica,
pois sempre podem servir a criar novas necessidades e fetiches por
mercadorias.
Enquanto
isso, no mundo real de fato, onde
a imensa maioria das massas trabalhadoras sobrevive, fora das telas
de cinema, não há nenhum glamour,
mas a exploração brutal de bilhões
de mulheres e homens que trabalham em condições precárias, por
exemplo, nas fábricas da Mattel na Ásia,
denunciadas por violarem direitos trabalhistas elementares.¹
Talvez
a única serventia desse filme seja mostrar de forma escancarada que
na luta contra a opressão feminina, muito diferente do que defendem
as feministas burguesas, nem toda a crítica é válida, muito pelo
contrário,
pode ser incorporada e servir de apoio a toda essa velha ordem.
A
Grande Revolução Socialista de Outubro na Rússia, em 1917, já fez
na prática crítica contundente ao capitalismo e ao patriarcado, e a
Grande Revolução Cultural Proletária na China aprofundou-a.
Devemo-nos conscientizar
de que estamos atrasadas e o que
corresponde é levar tal
crítica às últimas
consequências, travar uma guerra contra toda a exploração e
opressão que pesa sobre a classe e especialmente sobre as mulheres
trabalhadoras.
Declarar
guerra ao feminismo burguês que com sua defesa de
“representatividade” como principal arma de luta pela
“libertação”
feminina não passa de um engodo reformista, facilmente assimilado
pelo sistema capitalista, que inclusive passa a lucrar mais
com isso, já que o “empoderamento”
para essa gente é via de regra o consumo.
Para
o capital monopolista
imperialista não importa qual será a aparência física das
bonecas,
contanto que isso os traga lucro. Nesse quesito mais uma vez o
feminismo burguês se mostra impregnado pelo idealismo reacionário
ao defender que basta transformar as representações culturais para
que se altere também a realidade, e joga como linha auxiliar na
manutenção da opressão.
Ao
tentar reinventar a boneca, o novo filme da Barbie não passa de mais
um produto e mais uma arma de disputa política e ideológica no
âmbito da luta de classes entre burguesia e proletariado. A
burguesia tenta transformar as críticas que existem ao próprio
sistema de opressão e exploração que ela produz em mais uma
mercadoria com a
qual ela pode lucrar. As críticas ao papel histórico da Barbie como
representante de um padrão inalcançável de feminilidade, às
empresas que lucram com uma falsa ideia de diversidade, etc., são
esterilizadas e se tornam mais um produto que é consumido avidamente
pelos oportunistas que creem que isso é um avanço, que qualquer
crítica é válida e que a “reforma” da Barbie se trata de mais
um passo no caminho da igualdade de direitos. Da nossa parte nem um
crédito a
essa obra. Não queremos reformar a Barbie e nem esse podre sistema
de opressão e exploração do qual ela é fruto, queremos por tudo
isso abaixo. Para isso o que corresponde é uma só
crítica e ação contundentes contra o imperialismo,
a reação e o feminismo burguês.
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Notas: